“Aproximem-se um pouco, filhas de Júpiter! Vou demonstrar que o único acesso a sabedoria perfeita, a que chamamos a cidadela da felicidade, é através da loucura (Erasmo de Roterdã).”
Mas, este caminho, mesmo quando não leva a nenhuma sabedoria final, mesmo quando a cidadela que promete não passa de miragem e loucura renovadas, esse caminho é em si mesmo o caminho da sabedoria, se for seguido sabendo-se que se trata justamente do caminho da loucura. O espetáculo inútil, os ruídos frívolos, essa algazarra de sons e cores que faz com que o mundo seja sempre essa apenas o mundo da loucura, é preciso aceitá-la, acolhê-la em si mesmo, porém na clara consciência de sua fatuidade, dessa fatuidade que é tanto a do espectador quanto a do espetáculo. É preciso ouvir esse barulho tão seriamente quanto se ouve a verdade, mas com essa atenção ligeira, mistura de ironia e complacência, de facilidade e de secreto saber que não se deixa enganar, com a qual se ouvem normalmente os espetáculos da feira: não com os ouvidos “que servem para ouvir as prédicas sacras, mas aqueles que se prestam, na feira, aos charlatões, aos palhaços e aos bufões, ou mesmo as orelhas de asno que o nosso rei Midas exibiu diante de Deus”.
Aí, de imediato colorido e barulhento, nessa aceitação cômoda que é uma imperceptível recusa, se desenvolve a própria essência da sabedoria. Sub-repticiamente, pela própria acolhida que ela lhe faz, a razão assume a loucura, delimita-a, toma consciência dela e pode situá-la.
“Quem sabe quão imperceptível é a vizinhança entre a loucura, com as joviais elevações de um espírito livre, e os efeitos de uma virtude suprema e extraordinária?”
Em Cervantes ou Shakespeare, a loucura sempre ocupa um lugar extremo no sentido de que ela não tem recurso. Nada a traz de volta à verdade ou à razão. Ela opera apenas sobre o dilaceramento e, daí, sobre a morte. A loucura, em seus inúteis propósitos, não é vaidade; o vazio que a preenche é “um mal bem além de minha prática”, como diz o médico a respeito de Lady MacBeth. Já se tem aí a plenitude da morte: uma loucura que não precisa de médico, mas apenas de misericórdia divina. A alegria suave, enfim encontrada por Ofélia, não a reconcilia com felicidade alguma; seu canto insano está próximo do essencial quanto “o grito de mulher” que anuncia, ao longo dos corredores do castelo de MacBeth, que “a Rainha morreu”. Sem dúvida a morte de Dom Quixote ocorre numa paisagem calma, que se reconciliou no último instante com a razão e a verdade. Mas, será esta repentina sabedoria da loucura outra coisa que não “uma nova loucura que acaba de entrar-lhe pela cabeça?” Equívoco indefinidamente reversível que só pode ser desfeito, em última instância, pela própria morte. A loucura dissipada só pode constituir uma única entidade com a iminência do fim.
Mas, a loucura logo abandona essas regiões últimas em que Cervantes e Shakespeare a tinham situado. E na literatura do começo do século XVII ela ocupa, de preferência, um lugar intermediário: constitui assim antes o nó que o desenrolar, antes a peripécia que a derradeira iminência. Deslocada na economia das estruturas romanescas e dramáticas, ela autoriza a manifestação da verdade e o retorno apaziguado da razão.
Scudéry sabia muito bem disso quando, querendo fazer em sua “Comédia das Comédias” o teatro do teatro, situou de uma vez sua peça no jogo das ilusões da loucura. Uma parte dos comediantes deve representar o papel de espectador e, os demais, o papel dos atores. É necessário, portanto, de um lado, fingir que se toma o cenário pela realidade, a representação pela vida, enquanto na verdade se está representando num cenário real; e, de outro lado, fingir representar e mimar o ator quando se é, na verdade, simplesmente, um ator que representa. Duplo jogo no qual cada elemento é ele mesmo desdobrado, constituindo assim esta troca renovada entre o real e a ilusão que é, ela mesma, o sentido dramático da loucura.
“Não sei que extravagância é essa de meus companheiros, mas ela é tão grande que sou levado a crer que um encanto qualquer lhes rouba a razão, e o pior é que eles estão tentando fazer com que eu a perca e vocês também. Querem me convencer de que não estou em um teatro, de que esta é a cidade de Lyon, de que ali existe uma hospedaria e aqui um palco, onde os comediantes que não somos nós, e que, no entanto somos nós, representando uma Pastoral”.
Nessa extravagância, o teatro desenvolve sua verdade, que é a de ser ilusão. Coisa que a loucura é, em sentido estrito.